Amazona Moderna
Não é o primeiro contato que Diana Prince (Gal Gadot) tem com a ruína da I Guerra Mundial - ela já viu os mortos e os mutilados, já sentiu o impacto das bombas e dos gases venenosos, já testemunhou a devastação. Mas, na trincheira em que os soldados já meses se amontoam na lama fétida, Diana diz basta. Incendiada de indignação, ela avança sobre a "terra de ninguém" que a separa da trincheira alemã a passos largos, aparando as balas com os punhos e os escudo, impaciente para chegar ao outro lado e aniquilar os ninhos de metralhadoras, parar o inimigo, pôr um ponto-final no horror - ao menos naquele horror particular, naquele dia. Trata-se de um fabuloso momento de virada em Mulher-Maravilha: o instante em que uma heroína compreende sua missão e se entrega a ela, e em que se mostra na sua plenitude física e na força inadiável de suas convicções. É, também , uma extraordinária cena de ação, coreografada com o máximo de vigor, impacto e originalidade - a israelense Gal Gadot, que foi treinadora de combate durante o serviço obrigatório no Exército, combina graça e potência em medidas copiosas, e a diretora Patty Jenkins extrai o sumo da fisicalidade e da personalidade da atriz. Pronto: tanto se adiou e temeu uma megaprodução protagonizada por uma super-heroína, e ela chega como um acerto notável e como um divisor de águas.
Mulher-Maravilha não é um marco apenas no ponto de vista de conflagração da política de gênero de Hollywood; é decisivo também para o universo da DC Comics no cinema. Depois dos equívocos que empanaram o lustro de Homem de Aço e Batman vs Superman, e de um péssimo Esquadrão Suicida, a DC parece ter encontrado um diapasão pelo qual acertar seu tom. Com seus heróis em geral tão impolutos, a editora pratica um tom mais grandioso e grandiloquente que o da concorrente Marvel; às vezes, ele até namora o kitsch - como na introdução que acompanha a vida de Diana na Ilha de Themyscira, onde Zeus escondeu as guerreiras amazonas da cobiça de Ares, o deus da guerra. Mas, agora, esses atributos ganham um lastro imprescindível: propósito e consequência.
Não falta leveza a Mulher-Maravilha. Ela vem, sobretudo, da curiosidade da protagonista ante a criatura tão estranha - um homem! - que cai de avião na sua ilha. Salvo do afogamento pela amazona, o espião americano Steve Trevor (Chris Pine) só precisa limpar o sal dos olhos para concluir que nunca viu mulher mais impressionante do que Diana. E Diana institivamente sabe que este é um exemplar masculino, digamos, especial. Em cem outros roteiros, Diana e Steve bateriam cabeça o filme inteiro antes de se descobrirem almas gêmeas. No roteiro que Patty Jenkins concordou em dirigir, não. Steve e Diana causam certa perplexidade um ao outro, mas acolhem a atração imediata - e fácil, calorosa, cheia de flerte e de expectativas.
A quem esperava de Mulher-Maravilha uma visão pós-feminista, Patty Jenkins oferece algo melhor: o romance entre um homem e uma mulher que se apreciam mutuamente e que, quando se descobrem muito diferentes, tendem a achar que a diferença é bem agradável. Transferida da Ilha de Themycira para a Europa conflagrada de 1914-1918, Diana, é claro, encontra recepção diversa. Roupas e costumes são talhados para coibir as mulheres, e delas só se espera aquiescência. A amazona nem tenta entender tanta tolice. Impõe-se apenas - não como mulher, mas como indivíduo. "Nada me agradaria mais do que não ter de ser anunciada como a mulher que dirigiu um filme sobre uma super-heroína. Sei que é um fato relevante, mas mal posso esperar pelo dia em que não o seja", disse Patty Jenkins.
Mulher-Maravilha tem assunto até mais urgente para abordar: a insensatez que mergulha 27 nações num massacre recíproco e produz dezenas de milhões de mortos, em nome de algo que ninguém sabe explicar. Também nessa frente a concepção de Patty se destaca pela escala humana e pela vocação para indagar. Em vez de procurar ganchos para espetáculos de destruição em massa, a diretora se propõe olhar este mundo pelos olhos sem vício de Diana. As cenas de ação resultam até mais eletrizantes, porque pessoais, explosivas, guiadas pela emoção - e impregnadas de sensação de fracasso e impotência.
É um exemplo de quanto o cinema comercial ganha por se estender para além de si mesmo: Patty Jenkins não é uma criatura da estufa de Hollywood, mas uma profissional com uma experiência variada - ela viveu mundo afora em função do trabalho do pai, piloto de caça e veterano do Vietnã, estudou pintura (são fartas as referências à arte renascentista em Mulher-Maravilha) e foi assistente em dezenas de sets antes de estrear com Monster - Desejo Assassino, para o qual se tornou correspondente da serial killer Aileen Wuornos enquanto esta aguardava a execução. Patty traz para o filme as próprias reflexões acerca do mal, e conclui que são muitos os seus tributários. Por exemplo, a sede de poder, como no caso do general alemão Ludendorff (Danny Huston). Ou o desejo de ferir como se foi ferido, que move a desfigurada doutora Maru (Elena Anaya). Ou ainda o medo e a ignorância. Ou talvez o mal seja mesmo uma das essências humanas. O deus Ares não explica a violência, como a amazona incialmente crê; ele apenas a instiga, porque a violência está sempre pronta a ser instigada. Diana a combate com algo que, neste seu novo mundo, lhe parece ainda mais essencial preservar: a pureza de coração - bata ele em que anatomia bater.
ISABELA BOSCOV - VEJA